Prefeitura de Vitória

Atalhos de teclado:

Arquivo Público de Vitória preserva a arte da Tesouraria dos tempos do bico de pena

Publicada em | Atualizada em

Por Edlamara Conti (econtieira$4h064+pref.vitoria.es.gov.br), com edição de Andreza Lopes


  • Trabalho decente e crescimento econômico

Álbum de Família
O tesoureiro Zemar Moreira Lima subscreve um envelope com o pagamento de um servidor
O tesoureiro Zemar Moreira Lima subscreve um envelope com o pagamento de um servidor. (ampliar)
Arquivo Público Municipal
Folha de pagamento preenchida em máquina mecânica de datilografia em 1947
Folha de pagamento preenchida em máquina mecânica de datilografia em 1947. (ampliar)

Nestes tempos de facilidades digitais, é difícil imaginar como os contadores e tesoureiros trabalhavam, nos séculos passados, apenas com ferramentas artesanais e mecânicas. Na Prefeitura de Vitória (ES), as rotinas financeiras da Tesouraria, preservadas no Arquivo Público Municipal desde o século XIX, ilustram uma jornada de transformação, que reflete a evolução do poder público e da própria cidade.

Entre muitos documentos históricos, o Arquivo Municipal abriga livros-caixa de folhas de pagamento escritos com bico de pena e tinta nanquim. Nomes dos servidores, cargos e vencimentos registrados com caligrafia ornamentada, típica dos escrivães da época. A linguagem, aos olhos atuais, seria considerada arcaica, apresentando termos como "official de gabinete" e "chefe de escriptorio".

"Temos 11 livros manuscritos e encadernados com as folhas de pagamento de 1894 a 1964. A partir da década de 1950, temos registros feitos com auxílio de outras tecnologias, como máquinas mecânicas e elétricas de datilografia", explica o arquivista Ewerton Silva Nicolau, responsável técnico pelo Arquivo.

Um tesoureiro e quatro moedas diferentes

Durante 50 anos, um mês e 18 dias, as folhas de pagamento e os salários dos servidores da Prefeitura de Vitória passaram pela conferência do contador Zemar Moreira Lima. Ele ingressou na organização em 1934 e, em pouco tempo, foi encarregado de fazer os registros de pagamento, nome por nome, valor por valor, à mão, usando caneta-tinteiro em folhas caprichosamente preenchidas. Nessa época, a moeda vigente no país era o Réis (de 1500 até 1942) e era contada em mil-réis e contos de réis (a partir de 1.000 mil-réis).

Em 1942, o Cruzeiro (Cr$) substituiu o Réis, na primeira grande reforma monetária do país. Como em toda mudança, há uma taxa de conversão - foi de 1.000 Réis para 1 Cr$ - e todo um trabalho de adaptação dos documentos e do pagamento do pessoal. Além dos registros à mão, a Tesouraria fazia o pagamento de cada servidor em papel-moeda, separado em envelopes individuais. Zemar era responsável por conferir cada envelope e por organizar e liderar a entrega em mãos a cada colega de Prefeitura, uma vez que uma pequena minoria possuía conta bancária.

Na década de 1960, toda a Prefeitura já utilizava as máquinas mecânicas de cálculo e de datilografia. No entanto, os documentos da Tesouraria contêm anotações à mão; em geral, observações acrescentadas após o fechamento dos relatórios. O trabalho fluía até que, em 1967, o Governo Federal tomou uma medida para estabilização do valor da moeda e substituiu o Cruzeiro (Cr$) pelo Cruzeiro Novo (NCr$). Na prática, foi um corte de três zeros, ou seja, Cr$ 1.000,00 viraram NCr$ 1,00.

"Na antiga sede da Prefeitura, no Centro da cidade, no dia do pagamento, a fila era enorme, dobrava o quarteirão. A gente ficava lá, sabendo que ia receber o valor certinho. Nunca estava errado", conta o servidor aposentado Júlio Peixoto, que ingressou na Prefeitura como contínuo, em 1969, exerceu várias funções e presenciou ainda várias mudanças de moeda até se aposentar, em 1995.

Em 1970, a moeda voltou a se chamar Cruzeiro (Cr$), sem alterar o valor em relação ao Cruzeiro Novo. Em meados dos anos 1970, o número de servidores dobrou: passou de pouco mais de 200 pessoas para quase 500. Nessa época, o papel carbono - outro material que as novas gerações não conhecem - era fundamental na Tesouraria, para produzir cópias dos registros e recibos.

Em 1974, com a inauguração do Palácio Jerônimo Monteiro, o pagamento passou a ser feito de forma mais descentralizada. O tesoureiro e sua equipe colocavam os envelopes com os salários em caixas e eles mesmos as levavam em uma caminhonete até os setores da PMV que funcionavam fora da nova sede administrativa. Com isso, as filas foram reduzidas, mas o trabalho das equipes da Tesouraria aumentou.

"Geralmente, o pagamento era feito aos sábados, para não atrapalhar a rotina dos dias úteis. Praticamente toda a Tesouraria trabalhava neste dia", conta Marcos André Alves, atual coordenador da Folha de Pagamento. Quando ele ingressou na Prefeitura, em 1984, já havia sido iniciada a transição do trabalho manual, feito por Zemar e equipe, para o moderno processamento de dados. Os novatos e os servidores que não possuíam conta-corrente em banco ainda recebiam os salários em mãos.

Arquivo Público Municipal
Ordenado
Ordenado' do prefeito de Victoria, capital do Espiricto Santo, Washington Pessôa, em 1915.
Arquivo Público Municipal
Folha de pagamento redigida a mão, com bico de pena e nanquim, de 1915
Folha de pagamento redigida a mão, com bico de pena e nanquim, de 1915.

Zemar Moreira Lima faleceu em dezembro de 1984, em plena atividade. Desde então, no Brasil, outras quatro moedas já entraram em vigor e saíram de circulação antes do Real, o que impacta toda a contabilidade, especialmente a folha de pagamento. Vale relembrar:

. Cruzado (Cz$): instituído pelo Plano Cruzado, em 28 de fevereiro de 1986, foi marcado pelo congelamento de preços e salários no governo Sarney para combater a inflação. Substituiu o Cruzeiro na razão de Cz$ 1,00 para Cr$ 1.000 (corte de três zeros).

. Cruzado Novo (NCz$): criado pelo Plano Verão, ainda no governo Sarney, em 16 de janeiro de 1989, substituiu o Cruzado na razão de NCz$ 1,00 para Cz$ 1.000 (corte de mais três zeros).

. Cruzeiro (Cr$) - 3ª Geração: marcou o início do Plano Collor, em 16 de março de 1990. Manteve o valor do Cruzado Novo (NCz$ 1,00 = Cr$ 1,00).

. Cruzeiro Real (CR$): entrou em vigor em 1º de agosto de 1993; substituiu o Cruzeiro na razão de CR$ 1,00 para Cr$ 1.000 (corte de três zeros).

. Real (R$): Instituído pelo Plano Real, entrou em vigor em 1º de julho de 1994, com taxa de conversão de R$ 1,00 para CR$ 2.750.

Tecnologia e eficiência financeira

No início da década de 1980, na busca por maior eficiência na administração pública, o Município contratou o serviço do Núcleo de Processamento de Dados (NPD) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). A folha de pagamento foi uma das primeiras rotinas a serem processadas por conta do volume de cálculos repetitivos e por exigir precisão e segurança, especialmente em um contexto de inflação e trocas de moeda frequentes.

O novo processo envolvia especialistas, uma vez que os dados eram codificados e inseridos nas máquinas por meio de cartões perfurados, e o uso de grandes computadores mainframe, que só a Ufes e algumas grandes empresas no Espírito Santo possuíam. Eram muitos servidores e lançamentos como: Imposto de Renda, Previdência, Férias, Hora Extra, Insalubridade, Adicional Noturno, Salário-Família, Rescisão, além dos vencimentos. Os dados, no entanto, eram enviadas ao NPD em formulários preenchidos  pelos servidores da PMV responsáveis pela folha de pagamento.

Parte da equipe passava a noite trabalhando na Ufes, acompanhando o processo todo. "Depois do processamento e do fechamento da folha, os mesmos servidores transcreviam manualmente o pagamento na ficha financeira, chamada 'espelho', de cada servidor. Um por um, à mão!", lembra Dóris Coelho Moreira da Fraga, que ingressou na Prefeitura de Vitória em 1983, como assistente administrativa, e, atualmente, é assessora técnica da Secretaria Municipal de Fazenda (Semfa).

Para ela, todo o esforço valia a pena ao voltar para o expediente normal na Semfa, com a sensação de dever cumprido: "a folha processada dentro do prazo e o pagamento dos servidores garantido", lembra. Ainda hoje alguns desses espelhos estão arquivados em dossiês funcionais individuais, diz.

O marco da informatização ocorreu em 1995, com o sistema Fopag. A partir daí, outros sistemas foram adquiridos até que a Semfa passou a realizar todo o processamento com um sistema próprio, o Sistema Integrado de Gestão de Pessoas (Sigep). Atualmente, as informações são lançadas automaticamente pelo setor de RH da Prefeitura de Vitória, como progressões, decisões judiciais e exonerações.

"Hoje, a equipe opera com sistemas digitais complexos, garantindo celeridade, transparência e segurança no processamento da arrecadação e da folha de pagamento, conforme a legislação e a sociedade exigem", diz Regis Mattos Teixeira, secretário municipal de Fazenda. A Era do Mainframe e dos cartões perfurados foi superada, no entanto, a cada dia surgem novas tecnologias.

Novos documentos, novas histórias

Trabalhando por 48 anos na Prefeitura de Vitória, Maria de Lourdes Jantorno Fioretti, a "Lurdinha do Protocolo", como é carinhosamente chamada, passou por muitas dessas transformações. Ela ingressou em 1973, ainda na antiga sede do Centro da cidade, onde conheceu Zemar Moreira Lima e recebeu holerites preenchidas com máquina de escrever mecânica. Ao se aposentar, há apenas 4 anos, Lurdinha já trabalhava com ferramentas como o Protocolo Virtual e a Vivi, a Inteligência Artificial do município.

"As mudanças vão acontecendo e a gente vai aprendendo na necessidade, a gente aprende fazendo. É claro que existem especialistas, existem treinamentos, mas não tem como parar o serviço até que todos estejam prontos para trabalhar com as novas ferramentas. A máquina toda anda com a raça e a dedicação dos servidores", diz.

De acordo com a norma técnica, o descarte de documentos é feito após 35 anos - resguardando alguns exemplares, após curadoria, a título de preservação histórica. No entanto, segundo o arquivista Ewerton Nicolau, os registros a partir da década de 1980 ainda não são considerados históricos. "Esses são considerados documentos administrativos, porque ainda podem ser utilizados para fins de aposentadoria, por exemplo", diz.

"A tecnologia mudou, passamos da máquina de escrever para a inteligência de dados. Mas a razão do que fazemos continua a mesma: servir aos moradores e contribuintes de nossa cidade e garantir que cada centavo seja administrado com a máxima responsabilidade e eficiência", conclui o secretário Regis Mattos Teixeira.

Foto Divulgação
Folder da década de 1960, de calculadora de mesa Precisa Mod.162-12, comprada pela PMV
Folder da década de 1960, de calculadora de mesa Precisa Mod.162-12, comprada pela PMV.
Foto Divulgação
Era do Mainframe: os primeiros computadores da Secretaria da Fazenda eram máquinas grandes
Era do Mainframe: os primeiros computadores da Secretaria da Fazenda eram máquinas grandes. (ampliar)